sábado, 30 de junho de 2007

O Discurso de Satã

I. PRÓLOGO

Quando Satã pisou no chão do Inferno
Sentiu no peito o gume da aflição.
Triste, até seu sorriso franco e terno
Revelou muita mágoa sem perdão.

Atrás de si marcharam derrotadas
As mais belas estrelas desse céu
Que, balançando as asas alquebradas,
Seguiram-no sem pompa ou escarcéu.

Cabisbaixos, chegaram ao Estige
Bem no instante de máxima tortura
Quando mesmo a razão em dor se aflige
E o pavor entre os anjos se mistura.

Pousando com cuidado numa rocha
Que sobre as águas fundas se mostrara,
Lúcifer como um lírio desabrocha
Asas que seu Senhor nunca aprovara.

Silente, refletiu cores tingidas
Pelo sangue inocente de um Abel
E, olhando para além de muitas vidas,
Foi beber no futuro um doce mel.

E abrindo os olhos negros novamente
Sorriu como jamais tinha feito antes,
Pois eis que vislumbrara no presente
Sucessões de vitórias bem distantes.

Voltou-se à legião dos decaídos
Onde o pranto vagava como vento
Misturando ao silêncio dos gemidos
A tempestade rouca de um lamento.

Com um só gesto impôs a sua calma.
Ergueu-se como sombra sobre mar.
Vestiu-se com a luz da Estrela d'Alva
E, finalmente, pôs-se a discursar.

[Continua na parte II - Discurso]

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Notas:

  1. Estige: um dos rios do Inferno clássico. Suas águas são sanguíneas pois sua fonte é o sangue derramado por todos os assassinatos que ocorreram na história humana. Localiza-se no quinto círculo do Inferno, o lugar destinado aos iracundos.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Adeus

Voltei ao meu passado para ver
O que havia de morto em minha vida
E apaguei minha estrofe preferida:
Aquela que jamais vou escrever.

Na lembrança de um cálido prazer
Eu recolhi uma lágrima escondida,
Compus versos de choro e despedida
E saudei esse verme a me roer.

Mas chegado o momento de partir
O sorriso se fez tristeza pura
E nos olhos o pranto virou mar...

Ó Senhor, por favor permita-me ir
Antes que meu amor vire loucura,
Pois aqui nunca foi o meu lugar!

quinta-feira, 28 de junho de 2007

Crepúsculo

Na abóbada do céu a noite escura
Escondera terrores sem poente
E um cadáver em cujo sangue quente
Reflui aquela dor que se perdura.

E vindo o Sol à minha sepultura
Descobri-me tomado novamente
Por aquele silêncio decadente
Que não se apaga nem se transfigura.

E em meu pavor pedi a todo deus
Que secasse da minha dor a fonte
E o mar aonde estão os medos meus.

Mas, vítima do fado de Faetonte*,
Golpeou-me o relâmpago de Zeus
Enquanto eu me elevava no horizonte.

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(*) Faetonte: na mitologia grega era o filho de Hélios (o Sol) e da ninfa Climene. Um dia Faetonte foi até o lar de seu pai no leste e convenceu este, mesmo contra a vontade, a lhe entregar a rédeas da carrugem do Sol por um dia. Assim, vestindo a coroa solar, ele próprio se fez sol e elevou-se no horizonte. Mas inábil, não conseguindo domar a fúria dos cavalos, aproximou-se demais das estrelas e da Terra, ferindo ambos com seu fogo. A pedido de Gaia, Zeus fulminou-o com um raio e Faetonte precipitou-se sobre o rio Erídano, onde jaz sepultado.

História completa: http://www.geocities.com/eros_x111/mit-faetonte.htm
Entrada na Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Pha%C3%ABton

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Envelhecer

Corpos apodrecendo em meu jardim
Revelam que jamais vivi assim:
Como uma tempestade de verão
Destelhando mansões noutra estação.

Hoje todo perfume que me embala
Recende docemente na ante-sala
Do necrotério mais lotado e frio
Onde a Saudade se faz e eu me crio.

Mesmo o meu verso louco e descontente
Suspeita que por muito que se tente
Não há como apagar a voz que clama.

E porque renasci do pó e da lama
Lamento já sem mágoa ou paixão
As flores que matei por diversão.

domingo, 24 de junho de 2007

Adormecer

And I find it kinda funny,
I find it kinda sad,
The dreams in which I'm dying
Are the best I've ever had
— Gary Jules, “Mad World”
Vejo um demônio caminhando pela noite
Atrás daqueles que se mostram sonhadores
A fim de impor-lhes o castigo de um açoite
Cujo fel lhes faz descobrir novos terrores.

E foi por medo desse arauto da agonia
Que várias vezes vim dormir as madrugadas
Deslizando uma faca de lâmina fria
Pelos meus pulsos de veias frágeis azuladas

Para depois despertar na manhã seguinte
Ensangüentado, fraco e bem menos propenso
A revidar cada palavra, cada acinte,
Que venham me dizer em nome do bom-senso.

Assim só me resta adentrar a escuridão
Com medo de gritar, sem ter como vencê-lo
Nas longas horas de dor que se seguirão
Quando na noite te revelas, Pesadelo —

Monstro de várias faces mas um só motivo;
Disposto a me fazer sangrar nessa tortura
Ao beber cada gota do vermelho vivo
Que flui de minhas veias quando ele as perfura.

Todo crepúsculo anuncia vossa presença
Entre as miragens do meu belo adormecer
De modo que é bem mais comum do que se pensa
Rever a Morte a cada novo anoitecer.

Mas numa dessas noites eu pedi socorro
E, como se eu visse-me em meio a um declive,
Descobri com horror que os sonhos em que morro
São também os melhores sonhos que já tive!

sábado, 23 de junho de 2007

Para Alessa

Minha tristeza reconhece teu sorriso
Em cada imagem sepultada na lembrança,
Um cemitério onde pálido diviso
A Grã Beleza que num túmulo descansa.

Por ti componho mais um verso alexandrino
Ao transformar em poesia meu lamento
Nessa loucura de adentrar o céu divino
Atrás de um beijo que me livre do tormento

De se matar a cada novo amanhecer
Ante a chegada desse déspota enfadonho,
O Sol, que rouba-me a alegria e o prazer
De desnudá-la nos castelos de meu sonho.

Ah, minha musa, temo nunca vir a vê-la!
E esse pavor me faz sofrer estranhas ânsias...
Mas sei que sempre lhe amarei, querida estrela,
Pois meu amor ignora trevas e distâncias.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Despedida

Vendo de mim aproximar-se esse vazio
Bem no momento em que de ti me distancio
Miro teu olhar mudo e peço-te por Deus:
— Diga até logo mais, mesmo se for adeus!

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Perda

Eu te perdi primeiro numa quarta-feira
Que não marcou o pó dos dias que vivi;
E, semelhante a uma lembrança, coube a ti
Aquela dor que foi a minha vida inteira.

Então achei-te nos salões, nos hospitais,
Pelas calçadas, mausoléus, na febre, no ar;
Mas eras sempre como um vulto a se mostrar
Na cor veneno azul dos cálices fatais.

Por fim a minha solidão virou loucura;
O meu desejo, apenas sangue e repelente.
Aguardo o dia que meu corpo finalmente

Encontre um túmulo que seja noite escura
E a minha mágoa denuncie o nosso amor
Porque contigo estou aonde a cova for.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Destruição

Do fundo do sepulcro a chuva me parece
Um monstro indiferente ao meu pedido mudo,
Que exibindo um sorriso ameno vai, contudo,
Pisando todo verbo erguido como prece.

Em lágrima ela cai liquefazendo a mente,
Fazendo apodrecer o que está na lembrança;
Sobre cada paixão o seu ódio descansa
E o que relembro perde as cores lentamente.

Que restará depois que a chuva me apagar?
Mesmo o amor que se agita além da sepultura
Vira pus quando a noite avança mais escura,
Pois na ausência do beijo o Nada faz seu lar.

Ai! Por obra da Morte, espectro da ruína,
Tudo que foi sublime agoniza e termina!

terça-feira, 19 de junho de 2007

Acalanto

Mãe, canta aquela canção
Que eu quero tanto escutar —
Uma canção de ninar
Que jamais se ouviu em vão,
Um som que não se desfaz —
Para que eu descanse em paz.

Mãe, não precisa chorar.
Teu filho só quer ouví-la
Nessa noite mais tranqüila
Em que a música está no ar.
Mãe, canta assim bem de leve
Como quem um verso escreve.

Sei que agora é diferente,
Que mesmo o Sol nunca brilha
Sobre os espinhos da trilha
Que me levou sempre em frente
Através do árduo caminho
Para tão longe do ninho.

Mãe, canta mais uma vez.
Sinto-me só e sonolento
Como se eu fosse um lamento
Que o coração não desfez
Em meu sangue dissoluto
Ou nas batidas de luto.

Tua voz será meu guia
Quando já desperto eu for
Enfrentar o medo e o horror
De sair na manhã fria
Cantando a sós e sozinho
A canção do antigo ninho.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Elegia à Musa Ausente

Longe do paraíso de teus seios,
Perdido no meu próprio pensamento,
Compus quatorze versos e queimei-os
Pois sem ti a poesia é um desalento.

E mesmo naufragando em devaneios
Não pude suportar esse tormento:
Ao partires, querida, meus receios
Transformaram-se em gritos de lamento.

Mas minha angústia só será finada
Quando em meu coração tão imperfeito
Somente palpitar uma certeza:

Que em breve, numa noite enluarada,
Hei de também sentir rasgando o peito
A dor que sepultou minha princesa.

domingo, 17 de junho de 2007

Um Cálice de Fel, Por Favor!

Enquanto explode o grito e o tumulto
Procuro o meu lugar na sepultura
E lá, preso nas teias da loucura,
Farei de toda lágrima um insulto

Que fale sem pavor do sangue oculto
Que flui em minha noite mais escura
E, qual fel e placebo, seja a cura
Dos males que venero em meu culto.

Mas é por suportar dores intensas
Que bebo sangue podre e deletério
Sabendo que respiro as águas densas

Do vício cujo estranho e vil mistério
Arrasta-me, olhos baixos e mãos pensas,
Aos negros mausoléus do cemitério!

sábado, 16 de junho de 2007

Um Morto Alegre

Facilis descensus Averno
Virgílio, Eneida, VI, 126
As tumbas escondem horrores antigos.
Na cova o pecado se faz mais nefando
E mesmo o Pavor passa os dias gritando
No ventre infecundo dos negros jazigos.

Nos túmulos há monstros cuja epiderme
O frio jamais fez tremer num inverno
E bocas que riram do Deus Sempiterno
Enquanto Ele estava no reino do verme.

Mas hoje sou eu que desdenho o caixão
E desço ao Abismo sem medo das dores,
Provando o sabor delicado das flores
Que tanto enfeitaram o meu coração.

Amai-me porque vou à atroz sepultura
Provar as delícias da humana ventura!

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Tríade das Sombras

I — Penumbra

Procuro pela noite mais escura
No cárcere simbólico da vida
E assim alargo minha sepultura
Correndo atrás da treva proibida.

Espero todavia que meus passos
Me guiem através de outro caminho
Distante desses pútridos espaços
Aonde fraco e pálido eu definho.

E vago pelas ruas solitário
Gritando meu pavor em cada porta,
E às vezes adormeço num ossário
Pois nada nesse mundo me comporta!

Um dia a escuridão vai me levar
E nela encontrarei o meu lugar...


II — Queda

Diante da verdade tenho medo
E assustam-me as paixões silenciosas
Que escrevem nos sepulcros um segredo
E plantam só jardins de negras rosas.

E apraz-me ver nas curvas do caminho
Cadáveres roídos pelo crime
De ter provado o sangue pelo vinho
Num grito que pavor algum exprime.

Porém se porventura me entristeço
Escondo-me num túmulo profundo
E lá as trevas me viram pelo avesso
E volto sorridente para o mundo!

Sabei que se de noite choro e cismo
A sombra sempre foi o meu abismo...


III — Ascensão

O Sol tornou-se tudo que abomino
E grito de pavor pela manhã
Ao vê-lo trespassar o véu divino
Que a noite costurou em seu afã.

Anseio pelas horas mais escuras
Veladas por demônios sonolentos —
As horas em que os medos e loucuras
Espalham seus segredos e tormentos.

Somente a noite cura as minhas dores
E dá-me aquela força desmedida
Capaz de derrotar os mil pavores
Que a luz do dia impõe à minha vida!

Ah, sofro de um terrível desatino:
Viver na escuridão, eis meu destino...

quinta-feira, 14 de junho de 2007

Visões Noturnas

As trevas abismais da noite fria
Cobriam os telhados das mansões
Enquanto a passo largo alguém seguia
Cantando baixo fúnebres canções.

Um grito se perdera nas calçadas
E junto aos muros sórdidos jardins
Sonhavam com as pétalas finadas
Que um sábio arrancou de seus confins.

Até a minha dor se fez silente
Naquele instante mágico e sublime
Regido por um deus morto e ausente
E cujo corpo exangue nos redime.

Se tudo não passava de miragens
Jamais conseguirei dizer ao certo —
Do crime o Sonho faz dez mil imagens
E cada uma assemelha-se ao deserto!

Verdade é que acordei num sobressalto,
Ferido, fraco, trêmulo e com medo,
Pensando em corações que sonham alto
E flores que florescem em segredo.

Diante de meus olhos a tristeza
Ainda figurava como um sonho
E dela vi surgir a Grã Beleza
Com seu aspecto pálido e medonho.

Chorando ela pediu: “Oh, faz-me um verso!”
Mas eu silenciei ante o perfeito
E, vítima de um medo mui diverso,
Deixei a inspiração morrer no peito.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Reflexos

Nas tuas fúnebres pupilas
Meu coração salta e se abisma
Querendo vê-las e sentí-las
Rasgando a luz igual um prisma.

São duas estrelas solitárias
Onde a Beleza é mais real
E entre paixões de cores várias
Arde um desejo sensual.

Mas que mistério seria esse
Que me fascina, que me ilude,
Qual uma esfinge que me lesse?

Meu dia passa menos rude
Se em teu olhar as horas vão
Vendo o que vê meu coração.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Felina Morre

Foi-se a última lágrima chorada,
E ainda restam outros tantos dias
Para que minhas culpas e agonias
Sejam menos tristeza ou então nada.

Felina foi Beleza e minha musa.
Tinha os olhos mais belos que já vi —
Duas luzes brilhando longe e aqui,
Na treva dessa vida tão confusa.

Agora ela jaz morta na lembrança,
Vítima da paixão que não reluz,
Sangrando dores, cinzas, ódio, pus...

Ó Morte, mensageira da Vingança,
Embora assassinando triunfais,
Certas estrelas não morrem jamais!

terça-feira, 5 de junho de 2007

Ousten Horror Consortium

Pálidos eles vagam pela tarde
Sem jamais misturar à pompa o alarde.

Odeiam a alegria, amam o Nada,
E assim seduzem toda a criançada.

Se sorriem, exibem poucos dentes:
São seres tristes, maus e descontentes.

Sempre buscam em si seu fim e meio,
Os vermes histriões que tanto odeio!

Fartam-se nos esgotos e na lama
E com grande prazer ferem quem te ama.

Muitas vezes me observam num reflexo:
São espelhos onde olho-lhe perplexo.

— Diabos, faustos, seres surreais,
Quis o destino sermos tão iguais!

segunda-feira, 4 de junho de 2007

Estátuas de Cemitério

São o que Deus desenha em nuvens de concreto
Sobre pedestais onde a forma do granito
Eterniza a rijeza hercúlea de um só grito
Cuja algidez imita o nosso desafeto.

São fantasmas vivendo além das agonias
E que trazem na face um olhar sempre fito
Como se na pupila um espasmo inaudito
Houvesse lhes imposto a constância dos dias.

São réplicas de um sonho horripilante e vago
Que uma vida medrosa expôs longe da luz
E sob cuja epiderme há tripas, sangue e pus.

São infantes que a Morte arremessou num lago,
Testemunhas daquela ausência de terrores
Quando o corpo apodrece entre velas e flores.

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Deserto em Mim

Queria compor um verso de alegria,
Ou gritar bem alto um grito de amor —
"Vejo apenas jardins!", eu exclamaria
Ao expulsar dos meus lábios toda dor.

No meu corpo condoído e maltratado
A rosa do prazer e mesmo a rima
Fariam surgir no céu plúmbeo e gelado
Um anjo para nos guiar lá de cima.

O Mundo seria assim uma só voz
A cantar canções de serenidade
Na certeza que poucos dias após
Poderíamos também rir de verdade!

Haveria espaço para tudo e todos
Nas estrofes do meu sangue e poesia;
Pois, livre das razões e dos engodos,
Seria fácil ver outra melodia.

Mas todo sonho não passa de um sonho
Quando teu coração maldiz a sorte
Nas garras desse cúmplice medonho:
O Medo, e sua melhor amiga, a Morte.

Apesar disso meu ser não se cala
E há de passar os anos procurando
A manifestação fugidia e rala
De um amor que não seja tão nefando;

Ou talvez, se for meu caminho certo,
Hei de encontrar alhures o jardim
Cuja miragem vi em cada deserto
Que descobri fazer parte de mim.